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Eleição na venezuela: entre a cruz e a espada


A América Latina foi mergulhada em mais uma crise após a proclamação do resultado da eleição presidencial venezuelana no dia 28 de julho de 2024 pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), que decretou o presidente Nicolás Maduro (PSUV) reeleito com 51,2% enquanto o opositor Edmundo González (MUD) recebeu 44,2%. Com a eleição matematicamente mais exata sendo contestada internacionalmente, a Venezuela se depara novamente em uma conjuntura extremamente instável desde a chegada do Chavismo ao poder em 1999: o sofrimento da nação é agravado quando somado com as sanções internacionais por parte do imperialismo, que sufocam o povo vizinho há uma década em sua fome e angústia por dignidade.



UMA BREVE VOLTA NO TEMPO


Inegável o legado da herança chavista para a Venezuela. O ex-coronel capitaneou um projeto abertamente de contestação à Democracia liberal e priorizou tentativas de construir um novo modelo de governança baseado nos chamados Conselhos Populares. Sob Chávez, o percentual de pobreza na Venezuela despencou de 42,8% em 1999 para 7% em 2011. A renda per capita dobrou, o acesso à água potável se tornou universal e o analfabetismo foi erradicado. A fome crônica caiu de 21% para 3% e o Estado distribuiu mais de 700 mil moradias. Mais permanente ainda foi seu antagonismo quase infinito frente aos EUA e seus aliados nas batalhas geopolíticas, ignorando as instituições de Bretton-Woods e ao poder da indústria bélica estadunidense, utilizando de seu cargo para nacionalizar quase todo o petróleo venezuelano por exemplo. 


Evidentemente nem tudo são flores na experiência chavista: a constante sabotagem externa e interna, amadorismo em frente de um novo cenário e contradições de dentro do próprio movimento com relação ao significado de Democracia levaram a uma escalada autoritária nas instituições do Estado que são bem encarnadas na figura de Nicolás Maduro como produto das mesmas. Apenas o cego ou o tolo podem classificar a institucionalidade do país como normal e apenas o mal-caráter pode admirá-lo integralmente. A Constituição Bolivariana de 1999 aprovada em Assembleia Constituinte por ampla maioria chavista é o marco sagrado da Democracia Popular idealizada na Venezuela. Porém, junto com seus benefícios vieram também características preocupantes como a extinção do bipartidarismo, concentração quase inacabada de poderes nas mãos do Executivo, enfraquecimento do Legislativo a partir da convocação de referendos seguidos e o direito a reeleição em um mandato de 6 anos, criando a possibilidade de um único indivíduo permanecer 12 anos no poder. Vale lembrar que o próprio Chávez de forma infame aprovou o direito a reeleições ilimitadas no referendo de 2009, após perder sobre o mesmo tema no referendo de 2007.


Outro fator-chave do chavismo é a aposta no papel das Forças Armadas como guardiãs do povo e aliadas da Revolução Bolivariana, participando das decisões e mudanças políticas cotidianas. Diferente da imensa maioria dos países vizinhos na América Latina, os militares venezuelanos não se colocaram majoritariamente contra o seu governo progressista e acataram o plano esquerdista, visto que o próprio Chávez era militar. Porém ao mesmo tempo, no governo de Maduro nota-se o uso dos mesmos para o sequestro, agitação, violência e prisões arbitrárias contra opositores.

 

Para não ser injusto com o chavismo, a direita venezuelana é provavelmente a pior e mais truculenta do continente: muitos grupos herdeiros das milícias de extermínio dos anos 80 estão na oposição principal a Maduro. Dos presentes nos bastidores da coalizão de Edmundo e sua tutora política Maria Corina Machado, muitos foram protagonistas do Golpe de 2002 em Caracas. Golpe que depôs Chávez por três dias e tentou subverter as conquistas nacionalistas de seu governo em nome do neoliberalismo cru e canibal. São essas forças que ajudaram Juan Guaidó em 2019 a se autoproclamar presidente sem nenhuma legitimidade para tal. Uma oposição tão ou até mais golpista que o governo.



VOLTANDO ÀS ELEIÇÕES


Uma eleição controversa com resultado mais suspeito ainda, fica difícil para qualquer democrata convicto e de verdade manter a simpatia e apoio às instituições eleitorais venezuelanas quando opositores são arrancados da porta de casa, corpos diplomáticos são expulsos de embaixadas e as tão comentadas atas eleitorais das urnas, único veículo disponível para resolver o imbróglio pacificamente, não são divulgadas.


O governo de Maduro ajuda a cavar sua própria cova e a romper os últimos laços de sustentação restantes entre os países irmãos. A paciência foi longa entre a comunidade internacional, porém a insistência em negligenciar e esconder as atas eleitorais esgotaram as perspectivas positivas para o relacionamento com Maduro. Infelizmente a situação pode caminhar para um banho de sangue quando essa mesma oposição virulenta também se declarou vencedora do pleito e reivindica a presidência para Edmundo González, já chancelado e reconhecido imoralmente pelo governo dos EUA, seus capachos de direita Milei (Argentina), Noboa (Equador), Lacalle Pou (Uruguai) e surpreendentemente pelo governo progressista do Peru. A precipitação é perigosa e arrisca uma crise continental que pode ir além da expulsão de fronteiras. 

Em sentido oposto, o governo da Bolívia reconheceu a vitória de Maduro, ao lado de países do Sul Global como Irã, Rússia, China, Cuba etc.


Já dito antes, a melhor saída da crise passa pela divulgação das atas. Não é à toa que Brasil, Colômbia, México e Chile vem exigindo a medida insistentemente antes de tomar qualquer decisão sobre reconhecer ou não o resultado da eleição. 


Naturalmente o Brasil exerce a liderança de “adulto na sala” frente ao conflito em andamento. O Itamaraty e o assessor especial Celso Amorim vem atuando como mediador entre diferentes partes das forças políticas venezuelanas e no diálogo com Estados em relação à postura a ser adotada: esse cenário já existia desde 2023 quando Maduro e a oposição assinaram o Tratado de Barbados, se comprometendo ambos a protagonizarem um processo amistoso e inteiramente democrático. O que foi rompido pelo próprio Estado venezuelano ao impugnar a candidatura de Machado.


 A liderança brasileira é explicitada quando a bandeira verde e amarela é hasteada na embaixada argentina em Caracas. Quando o próprio governo Milei, após a expulsão de seus diplomatas, precisa recorrer a Lula para assumir o edifício e proteger os refugiados políticos lá abrigados. Essa é a política externa pragmática e correta que o Brasil vem adotando, buscando manter o equilíbrio e a sensatez institucional diante de um terremoto de duas vias problemáticas.  


Erram profundamente as cadelas do imperialismo que exigem rompimento das relações bilaterais entre Brasil e Venezuela, são grotescos ao tratar a vida real como jogo de tabuleiro maniqueista, são traidores estúpidos ao desejarem intervenção militar dos EUA em nossa região: ferem e pisoteiam o princípio da autodeterminação dos povos de todo o mundo, princípio esse que é sagrado e a única régua moral nas relações internacionais.


Erram burramente também os fanáticos de plantão, que tratam a luta contra o imperialismo estadunidense como fator genérico e metafísico para justificar as situações mais repugnantes que são realizadas por parte do Estado da Venezuela em sincronia do poder Executivo com o Judiciário e Eleitoral. Ver parte do campo progressista, esquerdista e até petista se limitando à artimanhas fracas e contraditórias para ignorar o desvirtuamento da Democracia por parte de Maduro e assim se manter na confortável posição idealizada é acima de tudo frustrante. Chegamos no momento em que uma ínfima minoria de progressistas está equivalente ao bolsonarismo nos meios de ação.


Sendo ainda o cenário muito difícil, a parte feliz da tragédia é que os rumos serão ditados por ações dos governantes e pela pressão dos sensatos, não pelo militantismo irracional de um lado ou a ignorância vira-lata de outro bem maior e mais perigoso, a extrema-direita.


Exigir e demandar a divulgação completa e transparente das atas eleitorais é o caminho viável e correto! 

Parabéns aos presidentes Lula, Petro e Obrador pela manutenção da dignidade latino-americana!



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